O Direito Internacional e a Barbárie: o Mundo à Beira de Uma Nova Guerra

UMA GUINADA PERIGOSA
Paulo Afonso Linhares

Apesar da antiga e jamais resolvida questão de que não haveria um direito internacional público, justo em face da inexistência de “juízo” capaz de impor sanções a Estado infrator, sobretudo, na ótica do positivismo jurídico, a partir de 1945, foi construído um arcabouço normativo, encimado pela Carta das Nações Unidas — assinada em 26 de junho de 1945, em São Francisco, ao final da Conferência das Nações Unidas sobre Organização Internacional e que entrou em vigor em 24 de outubro do mesmo ano —, ademais de outros documentos adotados, abrangendo temas diversos, posteriormente, que conformaram algo que poderia ser tido razoavelmente como uma “ordem jurídica internacional”. Coisa nenhuma.

Ora, baixadas as cortinas da 2ª Guerra Mundial, depois da divisão do mundo pelos vencedores, a partir da Conferência de Potsdam, realizada em julho e agosto de 1945, os interesses nacionais foram cada vez mais evidenciados, porém, pela (ainda) tosca ideia de Napoleão Bonaparte, haveria uma Europa unida. Algo que não funcionou bem no primeiro caso nem no segundo: finda a década de 1940, o mundo foi engolfado pela “Guerra Fria” entre as potências nucleares Estados Unidos da América e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, pontilhada por muitas efetivas guerras regionais, cujos mais significativos, sangrentos e dilacerantes exemplos foram a Guerra da Coreia (1950-1953) e a Guerra do Vietnã (1955 a 1975), além de graves conflitos que tinham como pano de fundo a independência em face do colonialismo europeu, cujo melhor exemplo — e não único — foi a sangrenta Guerra da Argélia (1954-1962).

Enfim, a proscrição da guerra como regra de ouro do Direito Internacional foi prostituída tantas vezes, em todos os quadrantes mundiais, sobretudo, pelos Estados com assento no Conselho de Segurança da ONU, que restaram desacreditadas quaisquer normas multilaterais de resolução de conflitos: cada conflito, por mais extenso e sangrento que fosse, seria resolvido pelos Estados envolvidos, a exemplo da desonrosa retirada, com mais de 50 mil vidas perdidas, dos EUA do Vietnã.

Lamentavelmente, a lição não foi aprendida: apesar de 2 trilhões de dólares, quase três mil soldados norte-americanos pereceram no Afeganistão (2000-2021). Mais um desastre da grande potência mundial. Foram para casa, rabos entre as pernas: os imundos talibãs voltaram ao poder.

Na “era Trump 2”, o cenário agravou-se: arvorando-se da condição de xerife do mundo, o atual presidente dos EUA acha poder ditar, sem envolvimento direto, como deve agir o Irã, Estado soberano, diante do maciço ataque da máquina de guerra de Israel ao território iraniano, aliás, respondido pelo Irã que, contrariando as expectativas dos estrategistas militares, desmoralizou o “Domo de Ferro” de Israel quando, furados pelos mísseis e drones dos aiatolás, conseguiu impor danos significativos às cidades israelenses.

Desde logo, é de mister esclarecer que, no sentido desta reflexão ligeira, pode-se trocar o regime político do Irã pelo de Israel, sem querer volta: os mesmos males de um estão presentes no outro, na medida em que ambos são Estados teocráticos fundamentalistas, belicistas e que desprezam o princípio de respeito à dignidade humana. Enfim, simpatia zero para um e outro.

Aliás, recentemente o primeiro-ministro de Israel declarou publicamente que a solução para o conflito com o Irã seria resolvido se assassinado o aiatolá Ali Khamenei que, antes de ser chefe de Estado, é o mais importante líder religioso de seu país, aliás, dizem as boas línguas, seria descendente direto do profeta Maomé. Em suma, matar Khamenei — que já nomeou três aiatolás para substituí-lo, caso morra — não resolve, mas agrava o problema.

Ora, assassinatos desse tipo eram conspirações que ocorriam, porém, jamais antecipadas ou posteriormente reveladas: como foi a trama que imolou Júlio César no Senado Romano? Quem planejou a morte de JFK ou de Gandhi? Lincoln foi morto apenas por ator medíocre? Quem estava por trás do assassinato do pacífico Olof Palme? Poderiam ser perfiladas, aqui, milhares de conspirações e assassinatos de líderes. Os exemplos bastam e têm um ponto comum: tudo à sorrelfa, à socapa, na “entoca”, este para usar um fantástico brasileirismo linguístico.

Grave é que Donald Trump acolheu a tese de seu aliado, o medíocre Benjamin Netanyahu, de que mais cedo ou mais tarde o velho Khamenei será passado no fio da espada e tudo será resolvido. Num de seus típicos rompantes, disse que sabia onde o maléfico velhinho Khamenei estava escondido, todavia, não havia chegado a hora de seu sacrifício. Ridículo. Apenas ridículo.

Apesar dos positivistas, acredito na formatação de um Direito Internacional Público. Afinal, com orgulho, tive a honra de ser aluno, na UnB, de Francisco José Rezek, cujas brilhantes explanações e textos situavam o perfil da ordem internacional do pós-guerra e no respeito aos princípios que conformavam a nova ordem mundial no pós-guerra de 1945. Aprofundando o tema, não era possível fugir dos ensinamentos do cearense Hildebrando Accioli, cujo Manual de Direito Internacional Público foi visitado com enorme avidez: a relação entre Estados soberanos deveria pautar-se em preceitos de respeito à autodeterminação dos povos, não-intervenção, igualdade entre Estados, entre outros.

Em ambos — que foram chanceleres do Brasil em períodos diversos — era possível vislumbrar a influência inconfundível do maior dos diplomatas deste país: José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco. É bem certo que a sua herança foi olvidada em alguns momentos, a exemplo da perversa extradição de Olga Benario Prestes para o campo de extermínio de Bernburg, na Alemanha, onde, após dar à luz a sua filha Anita Leocádia, foi executada em câmara de gás.

Todavia, o que nos envaidece é contar com um rol de princípios que regem a relação do Brasil no concerto de Estados soberanos, perfilados no artigo 4º da Constituição da República, em que se preveem a solução pacífica de conflitos, a não-intervenção, a igualdade entre Estados, a defesa da paz, o repúdio ao terrorismo e ao racismo, a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade e, sobretudo, a prevalência dos direitos humanos.

É por acreditar nesses princípios que regem as relações do Brasil com outros países, que as declarações de Benjamin Netanyahu de que o assassinato de outro chefe de Estado soberano — o aiatolá Ali Khamenei — seria a solução para o conflito, posição essa apoiada pelo falastrão Donald Trump, que disse saber onde se homiziaria o líder iraniano, contudo, esse ainda não era o tempo de matá-lo.

Qual é a coisa nova nisso? A inovação é discutir às claras o assassinato de um chefe de Estado — e isso jamais pode ser considerado como ato de guerra — como algo legal e legítimo, quando, em verdade, deveria ser classificado como ação terrorista patrocinada por Estado soberano e, portanto, abominável para o Direito Internacional.

Afinal, por que poucos países brigam para que outros não tenham sua bombinha atômica? Mais do que óbvio: mesmo países sem maior peso na arena internacional, a exemplo da Coreia do Norte ou do Paquistão, que fazem parte do exclusivo clube de países detentores de armamentos nucleares, são tratados com enorme cautela. A Ucrânia, que herdou considerável arsenal de ogivas atômicas com o fim da União Soviética, jamais teria sido invadida pela Rússia se não tivesse aberto mão, como fez, desse poderoso ativo militar.

Afinal, depois do que se viu em Hiroshima e Nagasaki, os artefatos nucleares passaram à condição de elementos dissuasivos, que compuseram o pano de fundo da chamada “Guerra Fria”. Hoje, a grande indagação que não pode calar: tivesse o Irã extremista alcançado a tecnologia de enriquecimento de urânio capaz de produzir bombas atômicas, usaria esse ativo militar para afrontar não apenas Israel, mas outros Estados circunvizinhos, inclusive aqueles de fé islâmica como a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos, Jordânia ou Egito? Pelo patrocínio de grupos terroristas do porte Hezbollah, Hamas ou Houthis, desconfia-se que os xiitas que comandam o Irã não teriam maiores escrúpulos em usar armas atômicas contra seus inimigos.

E isso redime o governo igualmente extremista de Israel por iniciar uma guerra contra o Irã? Embora muitos países defendam que sim, que “Israel tem o direito de se defender”, fato é que a comunidade internacional deveria buscar os meios da negociação diplomática e outros mecanismos de contenção pacífica desse conflito.

Embora firme se mantivesse a aliança dos Estados Unidos da América com Israel, pairavam dúvidas quanto ao envolvimento ianque nos ataques ao Irã. O falastrão Donald Trump estabeleceu que em duas semanas tomaria uma posição acerca do conflito. Três dias após, contudo, no domingo de 22 de julho de 2025, um ataque aéreo de larga escala foi perpetrado pelos norte-americanos, com bombardeios às usinas atômicas do Irã — ato de guerra, aliás, revestido de ilicitude, na medida em que requeria autorização do Congresso norte-americano —, isto sem levar em conta que mesmo entre os partidários de Trump há um forte sentimento contrário ao envolvimento do país nessa guerra, mas ele resolveu abrir essa Caixa de Pandora. É imprevisível como isso terminará.

Segundo António Guterres, secretário-geral da ONU, essa ofensiva militar é uma “guinada perigosa” no Oriente Médio, de modo que condena “qualquer escalada militar no Oriente Médio. As pessoas da região não podem suportar outro ciclo de destruição. E, no entanto, agora corremos o risco de cair em um círculo de represália após represália”. Enfim, o caldo engrossou. O Irã certamente vai retaliar. No mínimo, vai usar em seu favor o fechamento do Estreito de Ormuz, por onde passa 20 por cento do petróleo consumido no mundo. Os reflexos negativos na economia global serão sentidos. O complexo mundo de agora vai ficar pior, na medida em que os Estados Unidos da América, além da Rússia, da China e de países da Europa Ocidental, apostam na possibilidade de auferir ganhos econômicos e políticos dessa insana guerra: vidas inocentes não importam. E abandonam a perspectiva de promoção da paz e harmonia entre os povos, um enorme e incompreensível regresso à barbárie. Lamentável.

Compartilhe agora:

MAIS POSTS