Por Paulo Afonso Linhares.
O governo federal deu importante passo para reverter o cenário de precarização do ensino superior brasileiro, intensificado, nos últimos anos, com a proliferação desenfreada de cursos na modalidade de Educação a Distância (EaD). Em medida que visa corrigir distorções graves na formação acadêmica, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou uma nova Política Nacional de Educação a Distância. O decreto assinado em 19/05/2024 traz mudanças profundas e necessárias para garantir maior qualidade e responsabilidade social na oferta de cursos universitários no país. Embora outros aspectos importantes ainda não tenham sido contemplados, é de se esperar que futuras mudanças continuem a aperfeiçoar esse importante recurso pedagógico.
A principal medida da nova política é a proibição da criação de novos cursos de Medicina, Direito, Psicologia, Enfermagem e Odontologia na modalidade EaD. A decisão é estratégica e acertada: são áreas que exigem vivência prática intensiva, contato humano, desenvolvimento de competências emocionais e atuação em contextos reais. Permitir que essas formações ocorram apenas por meio de telas e plataformas digitais não apenas compromete a qualidade do profissional formado, mas também coloca em risco a saúde e os direitos da população brasileira.
Além disso, o decreto impõe novos critérios para todos os cursos da área da Saúde e das Licenciaturas — campos também muito impactados pela fragilização da formação. As instituições agora precisam garantir que, pelo menos, 20% da carga horária total do curso seja cumprida de forma presencial ou síncrona mediada, como no caso de aulas on-line ao vivo, com interação em tempo real entre professores e alunos. A medida corrige um dos maiores problemas do antigo modelo EaD: o distanciamento absoluto entre o estudante e a experiência formativa real.
Outra novidade importante é a reformulação dos cursos semipresenciais, que agora terão regras mais claras. A nova política exige que essas formações combinem atividades presenciais com encontros síncronos mediados e conteúdos a distância, assegurando uma trajetória pedagógica mais equilibrada e efetiva.
Nos últimos anos, o recurso EaD se tornou o caminho mais barato e rentável para instituições privadas, quase sempre em detrimento da qualidade. Cursos foram transformados em produtos de prateleira, vendidos com mensalidades simbólicas e promessas de diplomas rápidos, porém sem a devida estrutura pedagógica, sem contato real com professores e sem compromisso com a formação crítica e técnica dos discentes.
O resultado desse cenário foi desastroso: profissionais mal preparados, diplomas desvalorizados e um mercado saturado de mão de obra sem preparo suficiente para os desafios reais da profissão. O governo Lula, com essa nova política, rompe com a lógica do lucro fácil e recoloca a educação no centro do desenvolvimento humano e social.
Afigura-se claro que não se pode negar a importância que teve o ensino a distância no trágico período da pandemia de Covid-19, a despeito das reconhecidas fragilidades e inadequações desse método a diversas áreas do ensino superior, mormente àquelas cujas características exigem contato entre pessoas, como é o caso da formação em algumas profissões da área da Saúde (médicos, enfermeiros, odontólogos etc.).
Ressalte-se, ainda, que não se trata de demonizar o ensino a distância — que é, sim, uma ferramenta poderosa quando bem utilizada —, mas de regular e qualificar seu uso para que cumpra seu verdadeiro papel: democratizar o acesso ao ensino superior sem abrir mão da excelência. Enfim, a mudança atual também é uma resposta à crescente demanda da sociedade por educação de qualidade e compromisso ético com a formação profissional.
Um aspecto de grande importância foi o modo como nasceu essa nova política de educação a distância: como resultante de amplo debate com diversos segmentos da sociedade. Ademais, teve sua formulação basilar a cargo de uma comissão de especialistas com larga experiência em educação a distância e em políticas públicas, além da marcante atuação do Conselho Consultivo para o Aperfeiçoamento dos Processos de Regulação e Supervisão da Educação Superior (CC-PARES), composto por várias entidades representativas da educação superior.
Outra ferramenta importante foi a realização de 20 visitas técnicas e a implementação de diálogos positivos e enriquecedores com entidades representativas da educação superior, de estudantes e de movimentos sociais. Segundo informações publicadas no portal do Ministério da Educação, “foram feitas interlocuções com o Conselho Nacional de Educação (CNE), o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), bem como as secretarias de Educação Superior (Sesu) e de Educação Profissional e Tecnológica (Setec), ambas do MEC. Para a elaboração da política, também foram realizadas interlocuções com especialistas estrangeiros e participação em eventos internacionais, além de audiências públicas na Comissão de Educação da Câmara dos Deputados” (Disponível em: https://surl.li/vycvox. Acesso em: 19 mai. 2024).
Em suma, um passo tão decisivo para a recuperação do ensino superior de nosso país não poderia ser dado à socapa — algo muito comum em governos autocráticos —, a exemplo do modelo de educação superior implantado em 1968, com o advento da Lei nº 5.540, de 28 de novembro de 1968 (Lei da Reforma Universitária), influenciada pela Doutrina de Segurança Nacional, formulada pela Escola Superior de Guerra, que serviu de base àquela política educacional com o objetivo de combater a subversão e fortalecer a ordem durante a ditadura militar (1964-1985).
Logo após, veio à lume o Decreto-Lei nº 477, de 26 de fevereiro de 1969, que, em linhas gerais, definia infrações disciplinares no âmbito das instituições de ensino públicas ou privadas, com sanções para professores, alunos, servidores e empregados técnico-administrativos, com o desiderato de restringir a liberdade de expressão e de manifestação em ambientes escolares.
Também teve forte influência no novo modelo de educação superior do Brasil, nos anos de chumbo da ditadura militar, a celebração do que passou à História como o famigerado “Acordo MEC-USAID”, plasmado numa série de convênios firmados entre o Ministério da Educação e Cultura (MEC) e a United States Agency for International Development (USAID), a partir de 1964. Em sua formulação fundamental, tais acordos tinham como alvo a realização de uma ampla reforma no ensino brasileiro, focada em um modelo de forte apelo tecnicista, espelhando o modelo norte-americano.
A partir desses instrumentos legais paridos do ventre da ditadura militar, o governo federal impôs absurdas restrições à autonomia das universidades, com controle não apenas sobre os conteúdos dos cursos superiores, mas também sobre a produção de conhecimento técnico-científico e filosófico, além da censura imposta à imprensa e da proibição das manifestações estudantis.
Isso passou — posto que com sofrimentos, sangue e lágrimas de tantos. Agora, é memória alavancadora de novas possibilidades para a educação brasileira, em face dos enormes desafios impostos pela conjuntura mundial de sociedades em rede e com vertiginoso desenvolvimento científico e tecnológico, além de novos parâmetros de convivência social. Com a nova política, o Brasil dá um salto qualitativo na regulação do ensino universitário e sinaliza que educação não pode ser tratada como mercadoria. Trata-se de um bem público, essencial para o desenvolvimento do país e para a construção de uma sociedade mais justa, eficiente, próspera e democrática.
Como se tornou comum afirmar: a educação é investimento, não mero produto. Assim, o governo Lula acerta muito positivamente ao dar esse importante passo de resgate da educação superior brasileira, porquanto o Brasil precisa — e merece — ter profissionais formados com ética, competência e responsabilidade, com a sobrelevação dos princípios que norteiam o exercício da cidadania, da segurança e da paz social, no inafastável contexto do Estado Democrático de Direito.