O Brasil e as mutações institucionais. Artigo escrito por Paulo Afonso Linhares

O BRASIL E AS MUTAÇÕES INSTITUCIONAIS


Paulo Afonso Linhares


As instituições jurídico-políticas, a exemplo dos organismos biológicos, normalmente experimentam constantes mutações em suas estruturas e modos de atuação, que representam, muitas vezes, enormes avanços ou retumbantes fracassos e retrocessos, ao longo de variados períodos de tempo. Igualmente diversificados são os impactos dessas mudanças, que vão daqueles imperceptíveis até os que representam estrondosos abalos estruturais, impondo parciais ou totais redesenhos institucionais.
As mais significativas mutações de cunho institucional são aquelas que, mormente nos Estados democráticos de direito, se concentram nas estruturas, no funcionamento e nas relações entre seus poderes (tradicionais): Executivo, Legislativo e Judiciário.


O mecanismo básico desse sistema — que entrou em funcionamento, pela primeira vez, nos Estados Unidos da América, no século XVIII — caracteriza-se pela independência de cada poder, preservada, contudo, a harmonia entre eles, mediada por ferramentas de checks and balances (freios e contrapesos, em tradução livre para o português), como imaginado por Montesquieu e plasmado nas “influências compensatórias pelas quais uma organização ou sistema é regulado, tipicamente aquelas que garantem que o poder político não se concentre nas mãos de indivíduos ou grupos”, segundo sua obra O Espírito das Leis, onde construiu o conceito de separação dos poderes com esse sistema de freios e contrapesos, cujo escopo é evitar a concentração de poder e o abuso por parte do governo.


Ressalte-se, todavia, que o sistema de freios e contrapesos foi sistematizado na obra coletiva The Federalist Papers, que reúne 85 artigos escritos por Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, alguns dos chamados Founding Fathers — pais fundadores — dos Estados Unidos da América, publicados originalmente entre 1787 e 1788. Ademais, foi esse país o primeiro a adotar tal sistema, por meio da pioneira Constituição de 1787.


No período monárquico do Brasil, iniciado em 1822 com a independência, instituiu-se um sistema de quatro poderes: os três descritos por Montesquieu (Legislativo, Executivo e Judiciário) e o Poder Moderador, inspirado na descrição do pensador franco-suíço Benjamin Constant, no livro Principes de politique (1815), segundo a qual se trataria de um poder neutro, pelo qual o rei asseguraria a harmonia entre os três outros poderes.

No Brasil, entretanto, a aplicação dessa teoria adquiriu uma conotação marcadamente autocrática, conforme se depreende da própria definição contida na Constituição de 1824: “Art. 98. O Poder Moderador é a chave de toda a organização Política, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independência, equilíbrio e harmonia dos mais Poderes Políticos”. Tal poder foi entendido como uma “tutela imperial dos Três Poderes” — frase atribuída a José Bonifácio de Andrada e Silva, uma das figuras centrais da independência do Brasil e da consolidação do Império.


Recentemente, Jair Bolsonaro e seus asseclas — inclusive o jurista ultraconservador Ives Gandra Martins — desenvolveram a ideia de que o Poder Moderador seria atribuição das Forças Armadas, numa leitura canhestra e cientificamente desautorizada do artigo 142 da vigente Constituição Federal, com inequívoca deformação do sentido segundo o qual a elas caberia, entre outras atribuições, a “garantia dos poderes constitucionais”, jamais como tutela sobre estes.


A adoção do sistema de emendas parlamentares no Brasil, derivado da ideia de “presidencialismo de coalizão” proposta na obra do jornalista Sérgio Abranches (1988), tem apresentado agravamentos profundos neste primeiro quartel do século XXI. Ora, no Orçamento federal de 2025, o total destinado a essas emendas parlamentares — que incluem emendas individuais (R$ 24,6 bilhões), de bancadas estaduais (R$ 14,3 bilhões) e de comissões (R$ 11,5 bilhões) — foi de R$ 50,4 bilhões, conforme aprovado pelo Congresso Nacional. Ressalte-se que as emendas individuais são de execução obrigatória (impositivas) e que, por imposição constitucional, 50% desses recursos, no mínimo, devem ser destinados à área da saúde.


Esse enorme volume de recursos, sob responsabilidade dos parlamentares federais, tem gerado severas deformações político-institucionais, a começar pelo esvaziamento do Poder Executivo nas decisões sobre certas políticas públicas e destinações orçamentárias. Os membros do Congresso Nacional — deputados e senadores — passaram a administrar, literalmente, o Orçamento federal, em gravíssimo desvio de atribuições. Como consequência, tem-se corrompido o alicerce republicano e semeado vícios que comprometem a própria legitimidade das investiduras parlamentares, na medida em que os congressistas passaram a distribuir recursos em larga escala com fins eminentemente eleitoreiros.

O total reservado para emendas individuais no Orçamento de 2025 — repita-se, R$ 24,6 bilhões — será distribuído entre os 513 deputados federais (aproximadamente R$ 37 milhões por deputado) e os 81 senadores (aproximadamente R$ 68,3 milhões per capita). Enfim, com essa dinheirama distribuída com claros objetivos eleitorais, deputados e senadores tendem a aumentar significativamente suas chances de reeleição, reduzindo, assim, as taxas de renovação em ambas as casas do Congresso Nacional.


Por fim, observa-se, nesta última década, uma crescente intervenção do Poder Judiciário — em especial de seu órgão de cúpula, o Supremo Tribunal Federal —, sobretudo em relação ao Poder Legislativo. No entanto, embora algumas decisões do STF possam parecer extrapolar sua competência, fato é que, no mínimo, aproximam-se do conceito político conhecido, na Ciência Política, como “cesarismo positivo”: a atuação dessa Corte tem corrigido graves desvios institucionais e garantido, inclusive, a preservação da ordem democrática, a despeito dos rudes ataques que sofreu, como na tentativa de golpe de Estado e supressão do Estado Democrático de Direito ocorrida em 8 de janeiro de 2023. Em suma, trata-se de uma benéfica mutação que, ao lado de outras, assegura o aperfeiçoamento e a longevidade das instituições do Estado, bem como o fortalecimento da cidadania.

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